Atrasado, abri o portão de casa e vi o meu ônibus passar. Então atravessei a rua de cara torta dizendo pra mim mesmo que o dia já tinha começado bem! Caminhava pensando em qual desculpa daria pro meu chefe por mais um atraso. Ao chegar na parada, tive a minha atenção chamada por um velho senhor que tomava chimarrão na varanda de casa:
– Bom dia, meu jovem, como andam as coisas?
– Bom dia, Seu João, tirando a correria e a falta de dinheiro, tá tudo indo – respondi após um profundo suspiro. – E com o senhor, tudo bem? – perguntei por perguntar.
– Olha, meu filho, eu ando muito cansado e, pra ajudar, estou…
Seu João prosseguiu com lamentações sobre dores aqui, dores lá, dores não sei onde, sem que eu pudesse entender com clareza o que dizia. É que o intenso vai e vem de carros na rua no começo da manhã, somado ao fato de que o velho senhor falava num tom de voz muito baixo, dificultava muito a minha compreensão.
– Pois é, Seu João, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta – eu dizia após perceber uma pausa em sua fala, sem saber se continuava falando da sua saúde debilitada, do aumento do preço das coisas no supermercado, ou da previsão do tempo pros próximos dias.
Parecia que quanto mais eu torcia pro ônibus chegar logo, mais ele demorava. Mal podia esperar para embarcar, colocar os meus fones de ouvido e me isolar em meu mundo particular. Ocuparia aqueles cinquenta minutos pensando nas broncas que eu teria pra resolver naquele dia, e a procura de ânimo pra encarrar mais uma jornada num trabalho que eu não gostava.
No entanto, o velho senhor não parava de falar, o meu ônibus não vinha, e eu me via obrigado a ficar repetindo, de forma automática, entre uma pausa e outra, apenas pra não deixa-lo sem resposta: “pois é, Seu João, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta”.
No dia seguinte, saí de casa mais cedo pra não perder o ônibus, e assim me livrar do esporro do meu chefe. Mas não consegui escapar de Seu João que estava lá, na varanda de sua casa, com a cuia de chimarrão em punho pronto pra me atualizar de tudo que lhe tinha acontecido nas últimas vinte e quatro horas. Como se houvesse alguma grande novidade!
Eu, sem entender quase nada do que o velho senhor dizia, e com o pensamento longe planejando todas correrias daquele dia, apenas repetia quando notava uma brecha em sua fala: “pois é, Seu João, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta”. Fiz aquilo até que a chegada do meu coletivo, praticamente lotado, deu fim naquele martírio.
Então, a partir de uma certa época, passei a embarcar num outro ponto de ônibus, que me fazia caminhar umas cinco quadras a mais do que o necessário, no sentido oposto à parada que ficava na frente da casa de Seu João.
Fiz esta mudança pra não ter mais que iniciar o dia enfrentando aquela situação chata e constrangedora de tentar compreender as suas lamentações, pra depois do término de cada uma delas ficar repetindo aquela afirmação pronunciada de forma automática, apenas para não deixa-lo falando sozinho. Afirmação que, nem mesmo para mim, servia de estímulo pra encarar todas as atribuições de meu dia: “pois é, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta”.
Numa certa manhã, saí de casa atrasado como em ocasiões anteriores e, ao fechar o portão, vi no final da rua o meu ônibus vindo. Então corri até o ponto mais próximo, que ficava na frente da casa de Seu João, e estranhei que ele não estava na varanda como de costume.
Já na manhã seguinte, de uma sexta-feira, saí de casa na companhia de minha mãe que tinha uma consulta médica no centro da cidade. E, como não quis fazê-la caminhar sem necessidade, nos dirigimos até o ponto na frente da casa de Seu João. Então mais uma vez a surpresa: ele não estava na varanda. “Deve ter ido passar uns dias na casa de um familiar no interior, ao invés de ficar aqui enchendo a paciência da vizinhança com seus problemas de gente velha”.
Já no sábado à tarde, portanto, terminada aquela semana de correria, fui até ao armazém próximo buscar umas cervejas pra beber com dois amigos, que estavam lá em casa pra assistir comigo um jogo de futebol na TV. Então o comerciante, que sabia de tudo que acontecia nas redondezas, me perguntou, enquanto pegava as garrafas no refrigerador:
– Ficou sabendo o que Seu João aprontou?
– Não, Seu Rubens. Não fiquei sabendo de nada. Já faz tempo que não falo com ele. O que houve?
– Ele se enforcou na garagem de casa na tarde da última quarta-feira.
– Comé qui é, Seu Rubens? – perguntei estarrecido.
– É triste, mas é verdade. Um vizinho estranhou a falta de movimento na casa e resolveu chamar pra ver se tava tudo bem. Como ninguém apareceu, decidiu entrar no pátio, e quando chegou nos fundos, deu de cara com ele pendurado numa corda.
Em seguida, o comerciante me alcançou as cervejas e o troco, virei as costas e voltei pra casa a passos lentos e cabisbaixo: “vai que justo no dia que Seu João decidiu se matar não encontrou alguém que lhe dissesse pra não se entregar, pra seguir na luta”.