Na correria do dia a dia – 3ª pessoa

Jonas, atrasado, abriu o portão de casa e viu o seu ônibus passar. Então atravessou a rua de cara torta dizendo para si mesmo que o dia não havia começado nada bem. Caminhava já pensando em qual desculpa daria ao seu chefe para mais um atraso. Ao chegar na parada, teve sua atenção chamada por um velho senhor que tomava chimarrão na varanda de casa:

– Bom dia, meu jovem, como andam as coisas?

– Bom dia, Seu João, tirando a correria e a falta de dinheiro, tá tudo indo – respondeu após um profundo suspiro. – E o senhor, como está? – perguntou por perguntar.

– Eu ando muito cansado, e ainda, pra ajudar, estou…

Seu João prosseguiu com lamentações sobre dores aqui, dores lá, dores não sei onde, sem que Jonas pudesse entender com clareza o que dizia. É que o intenso vai e vem de carros na rua, no começo da manhã, somado ao fato de que o velho senhor falava num tom de voz muito baixo, dificultava muito a sua compreensão.

– Pois é, Seu João, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta – dizia Jonas após perceber uma pausa em sua fala, sem saber se continuava falando da sua saúde debilitada, do aumento do preço das coisas no supermercado, ou da previsão do tempo para os próximos dias.

Parecia que quanto mais Jonas torcia para o ônibus chegar logo, mais ele demorava. Mal podia esperar para embarcar, colocar os fones de ouvido e se isolar em seu mundo particular, onde ocuparia aqueles próximos cinquenta minutos pensando em todas broncas que teria para resolver naquele dia, e também procurando ânimo para encarrar mais uma jornada num trabalho que não gostava.

No entanto, o velho senhor não parava de falar, o ônibus não vinha, e Jonas se via obrigado a ficar repetindo, de forma automática, entre uma pausa e outra, apenas para não deixa-lo sem resposta:

– Pois é, Seu João, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta.

No dia seguinte, Jonas saiu de casa mais cedo para não perder o ônibus, e assim se livrar do esporro do meu chefe. Mas não conseguiu escapar de Seu João que estava lá, na varanda de sua casa, com a cuia de chimarrão em punho, pronto para atualiza-lo de tudo que tinha acontecido com ele nas últimas vinte e quatro horas. Como se houvesse alguma grande novidade!

E Jonas, sem entender quase nada do que o velho senhor dizia, e com o pensamento longe planejando todas correrias daquele dia, apenas falava quando notava uma brecha em sua fala:

– Pois é, Seu João, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta.

Fazia aquilo até que a chegada do meu coletivo, praticamente lotado, dava fim naquele martírio. Então, a partir de uma certa época, Jonas passou a embarcar num outro ponto de ônibus, que o fazia caminhar umas cinco quadras a mais do que o necessário, no sentido oposto à parada que ficava na frente da casa de Seu João.

Fez aquela mudança para não ter mais que iniciar o dia enfrentando aquela situação chata e constrangedora de tentar compreender as lamentações daquele triste senhor para, depois do término de cada uma delas, ficar repetindo aquela afirmação pronunciada de forma automática, apenas para não deixa-lo falando sozinho. Afirmação que, nem mesmo para Jonas, servia de estímulo para encarar todas as atribuições de seu dia: “pois é, não podemos nos entregar, temos que seguir na luta”.

Em uma certa manhã, Jonas saiu de casa atrasado como em ocasiões anteriores e, ao fechar o portão, viu, no final da rua, o seu ônibus vindo. Então correu até o ponto mais próximo, que ficava na frente da casa de Seu João, e estranhou o fato de que ele não estava na varanda, como era de costume.

Já na manhã seguinte, de uma sexta-feira, Jonas saiu de casa na companhia de sua mãe que tinha uma consulta médica no centro da cidade. E, como não quis fazê-la caminhar sem necessidade, se dirigiram até o ponto na frente da casa de Seu João. Então, mais uma vez, a surpresa: o amargurado senhor não estava na varanda. “Deve ter ido passar uns dias na casa de um familiar no interior, ao invés de ficar aqui enchendo a paciência da vizinhança com seus problemas de gente velha”.

Já no sábado à tarde, portanto, findada aquela semana de correria, Jonas foi até a um armazém próximo buscar umas cervejas para beber com dois amigos, que estavam em sua casa para assistir com ele um jogo de futebol na TV. Então o comerciante, que sabia de tudo que acontecia nas redondezas, lhe perguntou, enquanto pegava as garrafas no refrigerador:

– Ficou sabendo o que Seu João aprontou?

– Não, Seu Rubens. Não fiquei sabendo de nada. Já faz um tempinho que não falo com ele. O que houve?

– Ele se enforcou na garagem de casa na tarde da última quarta-feira.

– Como é que é, Seu Rubens? – perguntou Jonas, estarrecido.

– É triste, mas é verdade. Um vizinho estranhou a falta de movimento na casa e resolveu chamar pra ver se estava tudo bem. Como ninguém apareceu, decidiu entrar no pátio. E, quando chegou nos fundos, deu de cara com ele pendurado numa corda.

Em seguida, o comerciante alcançou as cervejas e o troco a Jonas, que voltou para casa a passos lentos, semblante fechado e com o olhar distante: “vai que no dia que decidiu se matar não encontrou alguém que lhe dissesse para não se entregar, para seguir na luta!”.